sábado, 1 de agosto de 2009

O funk e a liberdade de expressão

Em 13 de julho de 2009 a Revista Época publicou uma reportagem onde criticava a truculência da PM que, ao coibir bailes funk irregulares em algumas favelas cariocas, acabava por cercear a liberdade de expressão dos moradores, ao proibir qualquer tipo de funk em qualquer tipo de evento.

A PM se vale da Lei Estadual 5265/2008 que exige, para a realização de bailes funk, uma série de requisitos, como banheiros, câmeras de vigilância, controle de entrada de menores, e, principalmente, autorização do Batalhão de Polícia Militar responsável pela área aonde o baile se realizará. Nem preciso comentar aqui que quase nenhum baile se adequa, se adequou, ou se adequará a essa Lei.

Escrevi, na noite de 3 de julho, uma carta aonde expunha minha indignação com o baile funk que não me deixava dormir. Versões dessa carta foram enviadas ao jornal O Globo, a editoria do programa Profissão Repórter e, finalmente, para a Revista Época. Esta última, demonstrando o seu caráter democrático, publicou-a na edição do dia 27 de Julho, mas por razões editoriais a resumiu, talvez até em demasia.

Valendo-me da minha garantia constitucional de liberdade de expressão, reproduzo abaixo, na íntegra, a carta enviada a Revista Época.



"Prezados repórteres,


Lendo a revista Época desta semana, me deparei com a reportagem "Um 'créu' no funk" aonde o jornalista Nelito Fernandes questiona até que ponto a Lei Estadual 5265 é uma ameaça a liberdade de expressão. Desta forma sinto-me compelido a expor a minha visão de morador da Tijuca no Rio de Janeiro.

A cada sexta-feira, sinto que Tim Lopes morreu em vão, em sua tentativa de mostrar a ligação dos bailes funk com a prostituição e exploração sexual de menores!

Na sexta, dia 3 de julho, a noite, após uma semana exaustiva no trabalho, desligamos o despertador e nos deitamos mais cedo. O que seria, para alguns, a receita perfeita para começar o final de semana, para nós representou o início de uma noite de tortura, que vem se repetindo semana após semana. Por volta de 1:45 e eu e minha esposa fomos acordados abruptamente, como toda a sexta-feira nas últimas semanas, por um baile funk no morro do Salgueiro, com uma música tão alta que parecia haver um rádio ligado dentro de nossa casa.

O baile funk no morro do Salgueiro, conhecido como o Caldeirão, começa toda a sexta, por volta de meia-noite, e vai até as cinco horas da manhã. Tudo ao som de uma música violentamente alta, ouvida perfeitamente a distância pelos moradores da Tijuca. Música que proclama o tráfico, e, principalmente, a pedofilia e a violência sexual. Em uma das músicas tocadas nesta madrugada, o DJ, que se identificava como Adriano, da equipe Pitbull, "declamava em versos" o que gostava de fazer (sexualmente) com "a novinha de 15 anos".

O baile do Salgueiro é objeto de diversas comunidades da rede de relacionamentos Orkut. Não fica difícil identificar menores adolescentes que consultam horários e rotas para chegar ao morro, e que contam suas experiências.

Moro em uma região em que há três hospitais e fico imaginando como deve ser estressante para os pacientes destas instituições. Imagino que mais estressante ainda é a vida do morador do morro, trabalhador, e que pega cedo no batente na manhã de sábado. Não acredito que todos no morro compactuem com esse baile, e nem que seja a minoria.

A cada sexta-feira o baile começa mais tarde, com um som mais alto, e com letras de mais baixo calão, que colocam a mulher como prostituta e nós, cidadãos de bem, como otários. Como começa mais tarde, acaba mais tarde, mas nunca antes das 5:00 da manhã.

Já tentei Polícia e Disque-denúncia. Os primeiros me informaram que sem um endereço completo, não há como deslocar a viatura para averiguação. O segundo, que foi aberta uma denúncia e que esta vai ser investigada. Concreto mesmo só os tampões de ouvido que eu e minha esposa compramos, mas cuja eficiência, quando posta a prova, mostrou-se muito baixa.

O síndico do prédio, em contato com uma das associações de moradores da Tijuca, descobriu uma denúncia feita ao Ministério Público e prontamente aderiu a lista de denunciantes. Nada ocorreu!

Face a estes bailes, penso que, como tantas outras leis, a Lei Estadual 5265 demonstrou-se apenas mais um texto bonito tramitado em nossas Assembléias. Nem a Polícia e nem qualquer outro orgão público Estadual age para cumprí-la, seja por falta de pessoal, ineficiência ou pura burocracia.

As 2:50h da referida sexta-feira, o DJ avisava: "Desentoca aí galera! O baile está só começando, com muita putaria e orgia!". Durma-se com esse barulho!

Na sexta-feira passada, dia 10 de julho, o baile funk teve um nível sonoro aceitável, percebido ao longe apenas com as janela bem abertas. Acredito que a mudança de comportamento tenha sido oriunda da presença da Polícia Militar no morro, após o assassinato do cabo Ênio Santiago, do BOpE. Isto prova que o nível sonoro dos bailes só é alto como forma de provocação e intimidação por parte do tráfico que o organiza.

De forma alguma quero discriminar pessoas que gostam, fazem ou frequentam bailes funk, mas é importante que tudo isto seja feito dentro dos limites legais, com respeito ao próximo.


Atenciosamente,


Rafael Gustavo da Cunha Pereira Pinto"


De um ano para cá, dormir na sexta-feira vinha sendo apenas um sonho, enquanto a realidade se mostrava através do baile funk aqui perto de casa. Infelizmente, a vida de um cabo da PM (mais especificamente do BOpE) precisou ser ceifada para que minhas noites de sono voltassem. Há três semanas o baile funk ocorre em níveis sonoros aceitáveis, e me questiono constantemente da correlação entre os fatos.

De qualquer forma, reafirmo: não sou contra o funk. Cada um ouve o que gosta! Entretanto, o direito a liberdade de expressão acaba exatamente onde o dever de respeitar às leis e ao próximo começa.

Há um Projeto de Lei tramitando na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, que pretende anular os efeitos da Lei Estadual 5265, e transformar o funk carioca em patrimônio cultural.

Para mim, tanto faz, pois não pretendo organizar bailes de qualquer espécie, mas gostaria muito que meu direito de dormir sossegado (garantido pela Lei do Silêncio, Lei Estadual 126/1977) fosse garantido, independente da música, da localidade.

Afinal, nem todo funk é criminoso e ruim: vide a letra de "Eu fico assim sem você", de Claudinho e Bochecha, regravado por Adriana Calcanhoto.

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